Resenha: Babel - R.F. Kuang - Queria Estar Lendo

Resenha: Babel - R.F. Kuang

Publicado em 21 de jan. de 2023

Resenha: Babel - R.F. Kuang

Eu não sei resenhar Babel. Falar sobre esse livro vai ser muito difícil, porque é impossível explicar o que foi essa leitura. O novo título da autora R.F. Kuang, que escreveu A Guerra da Papoula, é sobre o poder das palavras, da tradução e a inerência da violência diante de uma crescente e sufocante opressão.

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A história de Babel começa em 1828, em Canton, na China. Um garotinho está morrendo nos braços da mãe, que também está doente. Toda a família já se foi. Depois que sua mãe se vai, só resta ele. Mas alguém aparece para tirá-lo dali. Um professor inglês que se apresenta como Lovell, e que oferece a esse garoto, cujo nome não sabemos, uma nova vida do outro lado do oceano, na Inglaterra.

O garoto aceita. Passa a se chamar Robin Swift, por exigência do Professor Lovell, e viaja com ele para se tornar seu pupilo. Robin vai estudar, e aprender, e seguir à risca a disciplina exigida por essa nova sociedade, para poder ingressar na excelentíssima academia de Oxfordo - mais precisamente, no Instituto Real de Tradução; também conhecido como Babel.

Quando ingressa em Babel, Robin parece estar no paraíso. As pequenas opressões e violências que sofreu por ser diferente não importam. Ele finalmente está em casa. Encontra três amigos que parecem sua nova família. Ou talvez não.

Babel parece um paraíso, mas há sombras escondidas entre as prateleiras repletas de livros, e as infinitas possibilidades de tradução. Há segredos macabros guardados entre os alunos, e a crescente de uma sociedade secreta que tem como objetivo destruir tudo que o império britânico está construindo: e essa sociedade convida Robin para ajudá-los nessa missão.

Resenha: Babel - R.F. Kuang

Aviso de conteúdo: esse é um livro adulto. Tem cenas de violência física, tortura, assédio sexual, racismo, violência racial e suicídio.

Com uma mestria sem limites, R.F. Kuang tece uma história sobre tradução, o amor às linguagens do mundo, a opressão construída com a ajuda de algumas delas, e a violência que cresce quando a conquista e o poder falam mais alto do que a humanidade.

Babel é uma história poderosa. É um tapa na cara. É o tipo de dark academia que constrói sua trama em cima do que se espera nesse subgênero, mas que usa o que se espera justamente para criticá-lo. R.F. Kuang escreveu Babel como uma "resposta temática ao livro A História Secreta", que deu origem a esse subgênero. Eu não cheguei a ler o que originou, mas consigo imaginar o que ela tenha escolhido responder - considerando que A História Secreta é bastante branco.

"it would seem a giant paradox, the fact that after everything they had told Letty, all the pain they had shared, she was the one who needed confort. 
"pareceria um grande paradoxo, o fato de que depois de tudo que contaram a Letty, toda a dor que dividiram, ela era a pessoa que precisava de conforto."

Babel é sobre palavras, revoluções e brutalidade. É sobre o poder da tradução e de quem traduz. Sobre o horror crescente da colonização e da opressão de grandes potências sobre aquelas consideradas "inferiores". É sobre estudantes buscando seu lugar no mundo em um mundo que não os vê como pessoas, pura e simplesmente porque não são brancos.

É impossível ler essa história sem querer mastigar as páginas e o sistema. A potência que a autora coloca em suas críticas é afiada, às vezes sarcástica, se inclinando para o deboche ao falar sobre homens velhos e brancos querendo ditar o que é relevante ao mundo; às vezes é melancólica, porque não é um livro todo carregado de esperança, mesmo em sua revolução; às vezes é furiosa, porque fúria é tudo que conseguimos sentir ao acompanhar Robin e dois de seus amigos.

Resenha: Babel - R.F. Kuang

E aqui R.F. Kuang foi grandona sem medo, mais uma vez. Porque Babel é movido por um quarteto de personagens, apesar de centrar seu desenvolvimento em Robin.

Além dele, conhecemos Ramy, Victoire e Letty. Ramy é indiano, Victoire é negra e Letty branca.

Toda a construção da relação entre eles se baseia no quanto eles se amam, no quanto eles se encontraram dentro dessa universidade que preza tanto pelo individualismo e pela peculiaridade única de cada estudante, e no quanto eles são diferentes.

Babel trabalha muito a questão de raça e opressão, conversando abertamente através dos seus personagens sobre privilégio, racismo, misoginia, e a violência que acompanha cada ato de preconceito. Para uns, mais do que para outros - como a R.F. Kuang DESENHA através da Letty. Que, honestamente, me tirou tanto do sério o livro todo que eu cheguei a um passo de coringar.

Ramy é esperto, sarcástico e cheio de si. Ele não tem farpas na língua, o que pode acabar por colocá-lo em situações perigosas, considerando que a sociedade inglesa não o vê como parte dela. Ele é "exótico", ele é "estrangeiro" (mesmo tendo sido criado a maior parte da sua vida ali), ele não é branco, então ele não é parte daquele mundo.

"English did not just borrow words from other languages; it was stuffed to the brim with foreign influences, a Frankenstein vernacular. And Robin found it incredible, how this country, whose citizens prided themselves so much on being better than the rest of the world, could not make it through an afternoon tea without borrowed goods." 
"O Inglês não apenas pegava palavras de outras línguas; estava repleto de influências estrangeiras, um vernáculo de Frankenstein. E Robin achou incrível que esse país, cujos cidadãos se orgulhavam tanto de ser melhores do que o resto do mundo, não poderia passar por um chá da tarde sem bens emprestados."

O mesmo para Victoire, com o bônus que termos também a questão de misoginia. Ela e Letty são raras exceções nas dependências de Babel; mulheres tradutoras são um raridade, e têm que lutar dez vezes mais pelas oportunidades e para se provarem dignas de estar ali. Com Victoire, multiplique por um milhão. Porque ela é negra, e estamos falando de uma época em que a abolição da escravidão era recente. Uma época em que pessoas negras não eram sequer consideradas pessoas.

Tem muitos trechos de partir o coração e de causar muita revolta com o racismo que Ramy e Victoire vivem. E também tem muitos debates sobre como eles são parte de uma revolução muito poderosa pura e simplesmente por estarem ali.

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Também tem momentos leves, longe de ser um circo de horrores. Babel equilibra muito bem os momentos em que arranca nossa alma do corpo e a devolve para sorrirmos um pouquinho. Cenas leves, descontraídas, de amigos aproveitando a juventude e a liberdade (com cuidado, no caso de alguns).

Suas personalidades tão distintas entram em combustão umas com as outras, e amamos ver isso; Ramy e seu deboche, Robin e seu cuidado, Letty e seu ego, Victoire e sua razão.

"That's what translation is, I think. That's all speaking is. Listening to the other and trying to see past your own biases to glimpse what they're trying to say. Showing yourself to the world, and hoping someone else understands." 
"É isso que é a tradução, eu acho. É isso que é falar. Ouvir outra pessoa e tentar ver além dos seus próprios pré-conceitos para ter um vislumbre do que estão tentando dizer. Mostrar a si mesmo para o mundo, e torcer para que alguém entenda."

A jornada do Robin também envolve provações raciais. Ele é chinês, mas é mestiço; seu pai provavelmente era branco, mas ele nunca o conheceu. Em Oxford - na Inglaterra - é passável por branco sob a luz certa, no ângulo certo (como o livro nos mostra em várias situações), mas ainda é um garoto chinês. Ainda tem que confrontar o preconceito que ferve o sangue e mostra a ele que aquele mundo é injusto e talvez nunca o aceite.

E é através da Letty, a nossa Karen, que R.F. Kuang alfineta um público bastante específico em lutas sociais. As feministas brancas. Ah, como eu espumei com essa personagem. Ela é justamente a representação da "aliada"; a pessoa que está ali por seus amigos oprimidos, mas só se aceitarem que ela é tão oprimida quanto.

A personagem que não vê o próprio privilégio, e representa muito bem o que é o feminismo branco. É aquela coisa de "ninguém está falando que você não sofre, só está falando que tem gente que sofre mais, Karen!".

"But what is the opposite of fidelity? Betrayal. Translation means doing violence upon the original, means warping and distorting it for foreign, unintended eyes. So then where does that leave us? How can we conclude, except by acknowledging that an act of translation is then necessarily always an act of betrayal?" 
"Mas qual é o oposto de fidelidade? Traição. A tradução significa machucar o original, significa entortá-lo e distorcê-lo para o olhar estrangeiro, não intencional. Então o que isso nos diz? Como podemos concluir, exceto reconhecendo que um ato de tradução é, portanto, necessariamente e sempre um ato de traição?"

Muitas foram as vezes que Babel colocou esses quatro personagens frente a frente para debater privilégios, e muitas foram as vezes que Babel deu umas bofetadas na cara de quem se acha o topo da pirâmide do sofrimento mundial.

Vai muito além de opressão, é claro, mas esse é um livro pra esbofetear a nossa cara. Lembre-se disso. Porque existir fora do padrão é existir com a constante de que o mundo provavelmente vai tentar te derrubar. E é importante que aqueles que têm todos os privilégios de ser o que o mundo espera do padrão estejam dispostos a reconhecer esse privilégio e, principalmente, batalhar contra ele.

E é muito interessante como o livro faz isso, como desenvolve esses quatro personagens, seus sofrimentos e alegrias, seus momentos de paz e de provação, com muita verdade. Ramy, Robin, Victoire e Letty existem para mim. Eles foram reais.

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A relação desse quarteto é linda e de partir o coração. É uma amizade construída em cima de sobrevivência, de amor e de rancor. São quatro amigos muito diferentes que se encontraram em meio às palavras, ao poder da tradução e à certeza de que são eles contra o mundo; até que não mais.

Eles vivem momentos maravilhosos. Vivem situações terríveis. Estão juntos em todas as circunstâncias, porque parece que é assim que o mundo se move. Mesmo em suas diferenças, eles encontram semelhanças. O modo como a crescente da amizade acompanha a da história é tão bem trabalhada que o sentimento de cada personagem transborda das páginas.

Tem outros personagens muito importantes no decorrer da história, como o próprio Professor Lovell, o tutor de Robin. Griffin, que apareceu de repente e roubou meu coração, e que representa um ponto de virada muito importante da trama. Anthony, também, que traz um contraste ao discurso do Griffin, que é a razão contra a fúria dele.

Mas todos esses personagens importam muito para momentos chave do livro, então não vou falar mais a respeito deles justamente pela surpresa.

"That they were, in the end, only vessels for the language they spoke." 
"Que eles eram, no fim, apenas receptáculos para as línguas que falavam."

Babel é uma ficção especulativa, o que significa que pega esse cenário real e acrescenta elementos fantásticos nele. O Instituto Real de Tradução é um lugar para estudos e traduções, sim, mas também é um lugar que molda a magia que move a Inglaterra - Londres e Oxford, nossas cidades protagonistas.

Barras de prata são os objetos usados para construir a magia. O sistema que R.F. Kuang criou, aliás, é muito criativo; totalmente dependente de palavras e seus significados, e de palavras em línguas que não o inglês dominante - para mostrar, mais uma vez, o quanto a Inglaterra depende daqueles que oprime.

Por isso os tradutores são tão importantes. Babel é movida através deles. A Inglaterra é movida por causa deles. Robin, Ramy, Victoire, Letty e tantos outros estudantes e graduados estão ali para traduzir, sim, mas alguns são escolhidos para trabalhar com as barras de prata. Para construir, para esse mundo que não olha para três deles como pessoas, o seu dia a dia através da magia.

Resenha: Babel - R.F. Kuang

Eu nem consigo imaginar os níveis de pesquisa que a autora teve que fazer para escrever Babel. As palavras são o cerne desse livro, o núcleo que dá consistência à história. Não apenas por contarem a história, mas por fazer, assim como fazem nesse mundo mágico, ela ter a infinidade de significados que tem.

É irônico, e nítido, que o Instituto de Tradução tenha o nome de uma tragédia bíblica. Que a torre de estudos e traduções seja um lugar opressivo, quando, na história bíblica, era o lugar onde todos falavam a mesma língua. Pelo menos até a ânsia por poder condená-los ao castigo divino.

"Never forget that you are defying a curse laid by God." 
"Nunca se esqueçam de que vocês estão desafiando uma maldição criada por Deus."

Tem uma riqueza de cultura, de conhecimento e de História nesse livro. E é quase hilário o contraste das muitas culturas espalhadas pelo mundo quando ela confronta o fato de que ingleses... quase não têm. Tudo é roubado de outros lugares. Tudo que eles tanto prezam na verdade não tem o brilho e o requinte e o poder que em seus países de origem (o próprio chá inglês é dependente da China, veja bem).

Sabe as aulas de História, quando estudamos sobre as colonizações e ficamos com muita raiva? Babel pega essa raiva e multiplica por milhões.

O que começa com uma simples história sobre um garoto resgatado de um lar destruído, a quem é dada uma oportunidade de estudo e crescimento na vida, se transforma em questionamentos furiosos sobre o dedo do império mexendo onde não deve, sobre como o sistema é cruel, branco e elitista, e sobre como a violência e a destruição talvez sejam a única língua que grandes poderosos consigam entender sem a ajuda de um tradutor.

O inglês é de nível intermediário, mas achei que apanharia mais para ler. Foi relativamente suave, com exceção de termos mais antigos e diálogos rebuscados. Não é inacessível para quem já tem o costume de ler em inglês.

"Power did not lie in the tip of a pin. Power did not work against its own interests. Power could only be brought to heel by acts of defiance it could not ignore. With brute, unflinching force. With violence."
"O poder não estava na ponta de um alfinete. O poder não trabalhava contra seus próprios interesses. O poder só podia ser forçado a se ajoelhar por atos de desafio impossíveis de ignorar. Com força bruta, inabalável. Com violência."

Mas eu tô bastante curiosa e empolgada para ler Babel em português, justamente pela questão da tradução. Ela é tão intrínseca e essencial à trama, ela é tão falada e relembrada e é o motor que move nossos protagonistas e suas provações, e quero muito ver como esse livro vai ser na minha língua materna.

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Inclusive, optei por deixar as quotes em inglês, seguidas pela minha tradução delas.

Babel é um espetáculo narrativo. O tipo de livro que palavras não fazem jus, porque é uma experiência que você tem que viver. E eu estou dizendo como uma obrigação, sim. Estou te obrigando a ler Babel. Estou te obrigando a questionar e sentir raiva e melancolia e esperança. Estou te dizendo que R.F. Kuang escreveu um clássico moderno, e que esse livro é um dos mais importantes que já aconteceu para a literatura.

Sinopse: Traduttore, traditore: um ato de tradução é sempre um ato de traição. 1828. Robin Swift, órfão por causa da cólera em Canton, é levado a Londres pelo misterioso Professor Lovell. Lá, ele treina por anos em Latim, Grego Antigo, e Chinês, tudo em preparação para o dia em que vai entrar para o prestigioso Instituto Real de Tradução da Universidade de Oxford - que também é conhecido como Babel. Babel é o centro mundial de tradução e, mais importante, de mágica. Trabalho em prata - a arte de manifestar o significado de palavras perdido em tradução usando barras de prata encantadas - fez da Grã-Bretanha um poder sem precedentes, já que o conhecimento o império em sua missão de colonização. Para Robin, Oxford é uma utopia dedicada à busca por conhecimento. Mas o conhecimento obedece o poder, e como um garoto chinês criado na Inglaterra, Robin percebe que servir Babel é trair sua terra natal. Conforme progride em seus estudos, Robin se encontra preso entre Babel e a misteriosa Sociedade Hermes, uma organização dedicada a parar a expansão imperial. Quando a Grã-Bretanha procura uma guerra injusta contra a China por causa da prata e do ópio, Robin precisa decidir... Instituições poderosas podem ser mudadas de dentro, ou a revolução sempre requer violência?

Título original: Babel
Autora: R.F. Kuang
Editora: Harper Voyage
Gênero: Ficção especulativa (+18)
Nota: 5+


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