Resenha: Semente Originária - Octavia E. Butler

Recebido em cortesia da Editora Morro Branco, Semente Originária é o primeiro volume da série O Padronista. Um clássico de ficção científica que ajudou a consagrar Octavia E. Butler como a Grande Dama da Ficção Científica. E, nossa, que livro poderoso.

Se gostou desse livro, pode gostar dessas histórias:

• Kindred - Laços de Sangue, de Octavia E. Butler
• Nós somos a cidade, de N.K. Jemisin
• Babel, de R.F. Kuang
• Nona Casa, de Leigh Bardugo
• Piranesi, de Susanna Clarke

A história começa em um vilarejo solitário e uma mulher solitária - Anyanwu, uma curandeira de trezentos anos. Ela percebe, nas proximidades, um estranho. E esse estranho se apresenta como Doro. Em uma conversa que muito se assemelha aos confrontos entre o Bem e o Mal, ele explica que é mais do que um homem. É alguém com a habilidade de mudar de corpo quando bem entender. E que busca, em Anyanwu, uma possibilidade.

Doro tem uma ideia de construir o seu mundo perfeito, povoado por filhos e filhas e infinitas camadas de descendentes de sua linhagem poderosa. Para isso, ele tem feito reproduções seletivas. Usa do medo e da adoração daqueles que o conhecem e que vieram dele para tal. E Anyanwu, sendo uma semente originária, é a perfeição que ele busca para dar sequência a esse projeto.

Mas Anyanwu, diferente do que Doro esperava, não se curva. Não se submete. Ela é forte e resiliente, e não vai se deixar dobrar pelos anseios de um monstro em ascensão. Pelo bem daqueles que ama e que vieram dela, Anyanwu aceita acompanhá-lo; mas jura que nunca vai se curvar.

- Tudo morre, menos ele. E talvez você, Mulher Sol, talvez você.

Semente Originária é um livrão. Logo nas primeiras páginas já dá para entender porque esse livro ajudou a consagrar a Octavia E. Butler como uma das maiores autoras que a ficção científica já teve.

É uma história criativa, crítica e cuidadosa. Lida com o desconhecido, mas usa da ciência para explicá-lo.

Semente Originária se divide em três livros, em três épocas diferentes. E está sempre acompanhando essa jornada de seus protagonistas, e dos personagens que os cercam. O tempo não é nada para Anyanwu e Doro, mas significa muito para sua história.

É com extrema delicadeza que a autora fala sobre essa mulher, essa sobrevivente, mãe, filha, esposa, curandeira, bruxa, humana com habilidades extraordinárias, semente originária. Anyanwu é o alicerce da história, o que sustenta todo o decorrer e o desenrolar das tramas. E é poderoso o quanto ela é forte, gentil, frágil, amorosa.

- Viver se tornou um hábito muito precioso.

Anyanwu faz tudo por amor. Doro faz tudo por poder. E são dois extremos muito bem ilustrados na história. Semente Originária é sobre o projeto de Doro em construir uma sociedade, um mundo perfeito, formado por descendentes que carreguem grandes poderes, e que se curvem à sua vontade com eles. E é também sobre essa mulher extraordinária que jamais vai se curvar.

A narrativa da Octavia - que me fez devorar Kindred em poucos dias - é certeira. Só sofri um pouco nos capítulos longos demais, mas não é nada que atrapalhe a leitura. Faz sentido o tamanho deles, porque acompanham pontos importantes da vida dos seus protagonistas naqueles determinados momentos.

Doro é desprezível. É monstruoso, mas é interessante como a narrativa pincela pontos de sua humanidade (que ele já deixou para trás há muito tempo). Vivo há milênios, ele se desprendeu do que o fazia humano com poderes extraordinários. Doro é só seu poder. É só sua fome por novos corpos, novas vidas, novos descendentes. E não se importa em arrastar quem quer que entre em seu caminho, com potencial para tal, nessa missão.

Eu queria muito entrar no livro pra arrastar a cara dele num muro de chapisco. Qualquer cara que seja.

Os embates entre ele e a Anyanwu crescem em tensão e raiva. No começo, era uma comunhão de interesses e pequenas ameaças. Mas, como um belo retrato de uma relação de abuso e poder, Doro mostra suas garras aos poucos; e Anyanwu nunca se dobra por completo. Ela resiste, em pequenos confrontos. Até explodir em grandes problemas.

- Você me reconhecerá em outro corpo assim que me escutar falando.

As discussões sobre raça, legado e gênero são impactantes. É grandioso como a Octavia trabalha cada um dos temas do livro. Não apenas ao falar sobre a violência que os envolve, mas também ao tratar dos momentos sensíveis e amorosos que vêm deles. Ela mantém a balança muito bem equilibrada ao falar sobre racismo ao mesmo tempo em que escreve uma protagonista preta tão orgulhosa da sua cor e da sua história. Quando as discussões sobre gênero aparecem, tratam do não-binarismo de um jeito brilhante.

E toda trama científica por trás dos poderes, de como eles funcionam, como são passados através da "reprodução cuidadosa" orquestrada por Doro - ou pela maneira com que Anyanwu existe e segue sua vida, sendo a semente originária de uma árvore genealógica sem fim - é muito interessante. O modo como as pessoas convivem com esse poder nas pequenas comunidades construídas entre os descendentes, tudo funciona - mas com muito "porém".

Enfim, a Dama da Ficção Científica, meu pessoal. Que mente a dessa mulher!

A edição da Morro Branco tem aquele padrão maravilhoso de sempre. Gostei muito da tradução de Heci Regina Candiani. A revisão está impecável, com uma diagramação confortável também (só sofri um pouco com a capa soft touch, vocês sabem que eu tenho questões com esse tipo de acabamento).

Semente Originária é uma leitura essencial para todos os amantes de ficção científica. Octavia E. Butler é uma leitura essencial para todo mundo que ama livros. Ela é poderosa em tudo que escreve, e não à toa deixou sua marca eterna na literatura.

Sinopse: No fim do século XVII, dois imortais se encontram em uma floresta africana. Um deles é Anyanwu, uma curandeira de trezentos anos que consegue mudar de aparência e usa sua sabedoria secular para ajudar as pessoas à sua volta. O outro é Doro, um déspota cruel que dominou o poder de roubar outros corpos quando o seu está esgotado. Juntos, eles vão transformar o mundo. Ao longo dos três séculos seguintes, Doro dá continuidade a um projeto de reprodução seletiva colossal, buscando criar uma genealogia dominante de seres sobre-humanos. Com mão de ferro, ele tenta controlar Anyanwu e a poderosa linhagem de descendentes dela, ainda que a mulher se recuse a ser subjugada. O confronto de ideais entre eles se torna épico. E, das aldeias do século XVII na costa ocidental da África até os Estados Unidos do século XIX, ambos travam uma guerra secreta, em que tudo é temporário, exceto os dois.

Título original: Sheets

Autora: Octavia E. Butler

Editora: Morro Branco

Tradução: Heci Regina Candiani

Gênero: Ficção científica

Nota: 5

SKOOB